NOSSA BRASILIDADE E NOSSA AFRICANIDADE VIVAS NA ESCOLA!
Artigo: NOSSA BRASILIDADE E
NOSSA AFRICANIDADE VIVAS NA ESCOLA!
Autor: MARTINS, Davi Silvestre Fernandes.
Fonte: JORNAL BOLANDO AULA DE HISTÓRIA N.56, ago-set 2007, p.7-9.
Primeiramente, o artigo aborda a Lei 10.639, em seguida discute o preconceito etnicorracial, por fim, exemplifica trabalhos possíveis de serem desenvolvidos pela escola e por cada disciplina.
NOSSA BRASILIDADE E
NOSSA AFRICANIDADE VIVAS NA ESCOLA!
Davi Silvestre Fernandes Martins
Conhecendo a lei
Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para
Assuntos Jurídicos
LEI N.º 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003
A Lei N.º
10.639 altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
O
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber
que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º A Lei n.º
9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts.
26-A, 79-A e 79 - B:
“Art. 26-A.
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”.
§ 1º O
conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os
conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística
e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3º
(VETADO)“
“Art. 79
-A. (VETADO)”
“Art. 79 -
B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’.”
Art. 2º
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9
de janeiro de 2003; 182º da Independência e 115º da República.
LUIZ INÁCIO
LULA DA SILVA
Cristovam
Ricardo Cavalcanti Buarque
A literatura especializada revela que a escola, de modo
geral, silencia sobre as questões étnicas, contribuindo para a marginalização
de toda uma população pela cor da pele.
Nem sempre de forma explícita, a escola reproduz preconceitos e práticas
racistas, “que se caracterizam, principalmente, pelo silenciamento no trato das
questões étnico-culturais, tendo como suporte o livro didático” (OLIVEIRA,
2005). Os livros usados na escola, nas poucas vezes em que falam dos negros,
desconsideram suas diferentes origens assim como a história de suas
civilizações. As pesquisas mostram a quase exclusão da figura afro-brasileira
no material didático. As representações que se constituem a partir dos livros
usados pela escola são as do negro como escravo, que executa trabalho braçal e
é inferiorizado intelectualmente. Dessa forma, o livro didático tem um poder
degenerador na constituição da auto-estima e da identidade da criança negra,
contribuindo para construir e reforçar sentimentos de inferioridade. Para
reverter esse quadro, é preciso desconstruir as representações negativas do
negro formadas no processo didático. A Lei 10639/03, ao estabelecer no Artigo
26A a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira busca
“reparar essa injustiça feita não apenas aos negros, mas a todos os
brasileiros, pois essa história esquecida ou deformada pertence a todos os
brasileiros, sem discriminação de cor, sexo, gênero, etnia e religião” (MUNANGA,
2005).
A promulgação da Lei 10639/03 representa um avanço no
sentido da promoção da igualdade nas relações raciais. Mas, não existem leis capazes de destruir os preconceitos que existem em nossas
cabeças e provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. A
educação ofereceria uma possibilidade aos indivíduos para questionar os mitos
de superioridade branca e de inferioridade negra neles introjetados pela
cultura racista na qual foram socializados. Não se trata da memória que
recupera apenas nossas glórias, nossos heróis e nossas heroínas, mas, sobretudo
de uma memória que busca recuperar nossa história em sua plenitude, até nos
momentos de insucesso e nos fatos que nos envergonham. Essa recuperação é como
uma operação de desintoxicação mental, uma operação sem a qual não podemos
reerguer a cabeça para apreender no mesmo pé de igualdade. A partir dessa
recuperação, poderíamos facilmente equiparar a expressão cartesiana “penso,
então sou e existo” à expressão “tenho a minha história e a minha identidade,
então sou e existo”. (MUNANGA,
2005).
Como
trabalhar a lei 10639/03 e as diretrizes curriculares para a educação das
relações étnico-racias e história e cultura afro-brasileira e africana na
escola?
Apresentamos aqui algumas
atividades já desenvolvidas por vários educadores de escolas públicas do Paraná
registradas no “Caderno temático: inserção dos conteúdos de história e
cultura afro-brasileira e africana”.
Sugestões
de atividades:
1. Para
as escolas, de forma geral:
• realização de atividades que propiciem o contato com a
cultura africana e afro-descendente, culminando em desfiles, exposições,
mostras de teatro e dança nas quais sejam apresentados: penteados, vestimentas,
adereços, utensílios, objetos e rituais resultantes desse processo;
• valorização da diversidade étnica brasileira, a partir
de discussões e atividades que tenham como foco a criança e o jovem negros, e
suas famílias em diferentes contextos sociais e profissionais;
• elaboração de pesquisas e debates sobre o espaço dos
afrodescendentes e de sua cultura nos meios de comunicação de massa (em
especial na TV).
2. Em Língua Portuguesa
e Literatura
• Realizar com
os alunos estudos e pesquisas de países que falam a língua portuguesa. O que os
une? Quais as razões? Atualmente como estão esses países? Qual a composição
étnica deles? Diferenças do Português falado e escrito entre eles. Exemplos: Na
alimentação: vatapá, acarajé, caruru, canjica etc. Na música: os instrumentos
musicais, maracá, cuíca, atabaque, reco-reco, agogô. Na religião: umbanda e
candomblé.
• Após debates
em sala, a partir de textos trabalhados com os alunos, solicitar que produzam
textos sobre temas como: o racismo no Brasil, a presença do negro na mídia,
políticas afirmativas, cotas, mercado de trabalho etc.
• Trabalhar
com as implicações da carga pejorativa atribuída ao termo negro e outras
expressões do vocabulário.
• Realizar com
os alunos estudos de obras literárias de escritores negros como Cruz e Souza;
Lima Barreto; Machado de Assis; Solano Trindade etc., destacando a contribuição
do povo negro à cultura nacional.
• Incluir, nos
conteúdos de literatura, o estudo do Teatro Experimental do Negro, iniciado no
Rio de Janeiro em 1944, e a pesquisa sobre a imprensa negra brasileira, no
início da década de 20. Alguns jornais produzidos por afrodescendentes
circularam semanalmente durante até mais de 50 anos.
• Utilizar
pesquisas e revistas produzidas pela comunidade afrodescendente do município do
aluno.
• Trabalhar a
leitura e interpretação de letras de músicas relacionadas à questão racial.
• Trabalhar
com os gêneros musicais do samba e rap.
• Solicitar
aos alunos a produção de poemas relacionados ao povo afrodescendente e sua
cultura. A partir dessa produção, a criança afrodescendente poderá construir
uma imagem da realidade social que não a inclui.
• Realizar
estudos de obras brasileiras que discutam e abordem questões relacionadas à
cultura afro-brasileira: Macunaíma, de Mário de Andrade; Casa Grande
e Senzala, de Gilberto Freyre; O Escravo, de Castro Alves; Sermões,
do padre Antonio Vieira; A Cidade de Deus, de Paulo Lins; O Mulato,
de Aluísio Azevedo; O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha.
• Na pintura,
fazer leitura e interpretação de obras de Di Cavalcanti, Lazar Segall e Cândido
Portinari, que retratam a figura do negro.
3. Em
História
O professor de História precisa
construir um novo olhar sobre a história nacional e regional/local, ressaltando
a contribuição dos africanos e afrodescendentes na constituição da nação
brasileira. Algumas visões equivocadas sobre o negro e o continente africano
devem ser desmistificadas, entre elas:
• a do negro
visto como escravo: não se pode naturalizar a situação do
negro como escravo. Os negros não eram escravos, foram escravizados. A África
não é uma terra de escravos. Os povos africanos eram portadores de história, de
saberes, conhecimentos, na maioria das vezes transmitidos pela oralidade;
• a da África
como um continente primitivo: a imagem de que o continente
africano é povoado por tribos primitivas em imensas florestas está presente no
imaginário da maioria das pessoas. Imagem construída pelos meios de comunicação
e pelos próprios livros didáticos. Na África, tivemos grandes nações e impérios
(por exemplo, o Egito Antigo). Muito das tecnologias utilizadas no Brasil, no
cultivo da cana-de-açúcar e na mineração, foram trazidos pelos negros oriundos
da África;
• a de que o
negro foi escravizado porque era mais dócil e menos rebelde que os indígenas:
esta idéia está presente em boa parte dos livros didáticos. Omite-se que a
história dos africanos escravizados está inserida num contexto de acumulação de
bens de capital, ocorrida entre os séculos XVI e XIX, envolvendo África, Europa
e Américas. No Brasil há uma história de organização e resistência, desde as
vindas nos navios negreiros, as fugas individuais e coletivas para os
quilombos, a organização em irmandades, a resistência da cultura nas
manifestações religiosas dos batuques e terreiros, até as formas de negociação
para a conquista da liberdade;
• a da
democracia racial: que se forjou na sociedade brasileira,
mascarando o tratamento desigual destinado aos afrodescendentes. Sugere-se para
a disciplina de História, entre outros, pesquisas referentes aos seguintes
temas:
ü Os grandes
reinos africanos, as organizações culturais, políticas e sociais de Mali, do
Congo, do Zimbabwe, do Egito, entre outros;
ü Os povos
escravizados trazidos para o Brasil pelo tráfico negreiro e as conseqüências da
Diáspora Africana;
ü As
resistências do povo negro (Quilombos, Revolta dos Malês, Canudos, Revolta da
Chibata e todas as formas de negociação e conflito);
ü A
promulgação da Lei de Terras e do fim do tráfico negreiro (1850) e o impacto
das ideologias de branqueamento (darwinismo social) sobre o processo de
imigração européia;
ü Os
remanescentes de quilombos, sua cultura material e imaterial;
ü A Frente
Negra Brasileira, no início dos anos 30, criada em São Paulo ;
ü O
significado da data de 20 de novembro, repensando o 13 de maio.
4. Em
Geografia
Sendo a
Geografia a ciência cujo objeto é o espaço geográfico e suas inter-relações,
caberá ao professor dessa disciplina tratar dos seguintes contextos:
• População brasileira: miscigenação de povos;
• Distribuição espacial da população afrodescendente no
Brasil;
• A contribuição do negro na construção da nação
brasileira;
• O movimento do povo africano no tempo e no espaço;
• Questões relativas ao trabalho e renda;
• A colonização da África pelos europeus;
• A origem dos grupos étnicos que foram trazidos para o
Brasil (a rota da escravidão);
• A política de imigração e a teoria do embranquecimento
no mundo;
• A localização no mapa e posterior pesquisa sobre a
atualidade de alguns países (como vivem, populações, idioma, economia, cultura,
história, música, religião);
• A organização espacial das aldeias africanas (questões
urbanísticas);
• Estudo de como o continente africano se configurou
espacialmente: as (re)divisões territoriais;
• Análise de dados do IBGE sobre a composição da
população brasileira por cor, renda e escolaridade, no país e no município, em
uma perspectiva geográfica.
• Discussões a respeito de práticas de segregação racial,
como as acontecidas, por exemplo, na África do Sul, e nos Estados Unidos da
América.
5. No
Ensino Religioso
• Estudo da influência das celebrações religiosas das
tradições africanas na cultura do Brasil;
• Pesquisa sobre as religiões africanas presentes no
Brasil;
• Estudo dos orixás.
6. Na
Educação Artística/Arte
• A presença de elementos e rituais das culturas de
matriz africana nas manifestações populares brasileiras: puxada de rede, macululê,
capoeira, congada, maracatu, tambor de crioulo, samba de roda, umbigada, carimbó,
coco etc.;
• Danças de natureza religiosa (candomblé), lúdica (brincadeira
de roda), funerárias (axexê), guerreira (congada), dramática (maracatu); profana (jongo);
• A contribuição artística da cultura africana na
formação da música popular brasileira: origem do batuque, do lundu e do samba,
entre outros;
• Poética musical envolvendo a temática do negro;
• Nossos cantores e compositores negros: a cultura africana
e afro-brasileira e as artes plásticas: máscaras, esculturas (argila, madeira,
metal); ornamentos; tapeçaria; tecelagem; pintura corporal; estamparia; estudo
de artistas plásticos como Mestre Didi (Bahia-Brasil) e a presença/influência
da arte africana nas obras de artistas contemporâneos;
7. Em Física e Matemática, numa proposta interdisciplinar
Explorar os conteúdos sobre a
estrutura de fractais (Física e Matemática) presentes na arte africana
(penteado, arquitetura, música, estamparia, objetos decorativos etc.). As
sugestões devem ultrapassar a condição de conteúdos, para que possam ser
analisadas e recontextualizadas pela ótica das artes e ser avaliadas
esteticamente através dos elementos do movimento, do som, dos elementos
plásticos: da cor, da forma etc.
8. Em Biologia/Ciências
Algumas temáticas podem ser
desenvolvidas no ensino de Ciências e Biologia, contemplando as relações
étnico-raciais e o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Por
exemplo:
• Estudo sobre as teorias antropológicas;
• Desmistificação das teorias racistas, destituindo de
significado a pseudo “superioridade” racial;
• Estudo das características biológicas (biotipo) dos
diversos povos;
• Contribuições dos povos africanos e de seus
descendentes para os avanços da ciência e da tecnologia;
• Análise e reflexão sobre o panorama da saúde dos africanos,
in loco. Essa análise deve considerar os aspectos políticos, econômicos,
ambientais, culturais e sociais intrínsecos à referida situação. Neste sentido,
o professor de Ciências e Biologia pode abordar os conflitos entre
epidemias/endemias e o atendimento à saúde, entre as doenças e as condições de
higiene proporcionadas à população bem como o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH).
9. Em Educação
Física
Atividades que podem ser desenvolvidas
nas aulas de Educação Física:
• Estudo das práticas corporais da cultura negra, em
diferentes momentos históricos;
• As danças e suas manifestações corporais na cultura
afro-brasileira;
• Os brinquedos e brincadeiras na cultura africana e sua
ressignificação nas práticas corporais afro-brasileiras;
• Os jogos praticados no Brasil pelos afrodescendentes e
africanos numa perspectiva histórica;
• As manifestações corporais expressas no folclore
brasileiro;
• A capoeira, seus significados e sentidos no contexto
histórico-social, como elemento da cultura corporal. Através da capoeira, é
possível resgatar toda a historicidade do negro, desde o momento em que foi
retirado do continente africano. São exemplos significativos as suas danças de
guerra e de caça, as festas, como a da puberdade, e as grandes caminhadas pelas
florestas. Tais elementos representam subsídios na construção de propostas para
o trabalho pedagógico nas escolas.
10.
Em Matemática
• Analisar os dados do IBGE sobre a composição da
população brasileira por cor, renda e escolaridade no país e no município.
• Analisar as pesquisas relacionadas ao negro e ao
mercado de trabalho no país.
• Realizar com os alunos pesquisas de dados no município
com relação à população negra.
Referências
MUNANGA, Kabengele. A
importância da história da África e do negro na escola brasileira. Jornal Subsídio, nº 11/2005, de Gruhbas Projetos
Educacionais e Culturais.
OLIVEIRA, Alaor Gregório de. “O silenciamento do livro didático sobre a
questão étnico-cultural na primeira etapa do ensino fundamental”.
In: Jornal Bolando Aula, nº 66/2005,
de Gruhbas Projetos Educacionais e Culturais.
PARANÁ. Sec. de Estado da Educação.
Superintendência de Educação. Depto. de Ensino Fundamental. Cadernos
temáticos: inserção dos conteúdos de história e cultura afro-brasileira e
africana / Paraná. Curitiba: SEED - PR., 2005.43 p.
Davi
Silvestre Fernandes Martins é bacharel, licenciado em Geografia, membro da
equipe pedagógica do Gruhbas, coordenador do projeto “A Lei 10639/03, a
diversidade cultural e étnica e as práticas escolares — material didático para
professores”, do Gruhbas/FNDE.